quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Por falar em Natal...
Luiz Maia

Ao lado de minha casa morava um casal de velhinhos - Dr. Alcides e dona Adélia. Trabalhava para eles um homem chamado José. Seu apedido era Zé Grande. Morava com eles em um casarão com árvores frutíferas, no bairro de Água Fria. Estatura mediana, negro dos dentes bem alvos, ele gostava de ajudar as pessoas e até passava por alcoviteiro. Era comum vê-lo a levar recados dos meninos para as meninas. Fazia isso para se divertir, sempre com um sorriso nos lábios. Dele escutei bastante dizer que não queria ver nenhuma moça morrer no caritó. Zé Grande tratava as pessoas com muita atenção, embora às vezes extrapolasse dando uma de xeleléu. Isso lhe custara o apelido de corta-jaca dado por sua patroa, a finada e sisuda Adélia Barreto. Ele era um homem feliz. Usava um anel tinindo de novo no dedo médio da mão esquerda. Se alguém olhasse para sua joia ele logo assoprava dizendo que era de ouro puro de 18 quilates. E não parava mais com aquela ladainha. Ele era assim.

 
Nunca vi Zé Grande amuado, chocho num canto da casa calado. Ao contrário, ele seguia a vida todo ancho, às vezes gritando de contente e feliz. Difícil não o ver alvoroçado, espivitado, correndo em direção à banca "A Sorte", no largo de Água Fria. Não deixava de fazer, por nada, a fezinha no jogo do bicho. Ele apostava todo o dia no milhar 2572. Depois corria na venda de seu Bento para comprar carne e verdura para o almoço. Na volta parava em frente de nossa casa e gritava, em alto e bom som: Dona Lourdes, bom-dia! Precisa de mim para alguma coisa? Mamãe respondia: Obrigada, Zé Grande! Peço somente para você entrar e conversar um pouquinho com a gente. Tudo bem, vou deixar esse catatau de compras em casa e volto assim que terminar. Não demorava muito e lá vinha ele sorrindo com as duas pernas das calças levantadas, deixando à mostra dois cambitos que não causavam inveja em ninguém. Antes do almoço mamãe sempre convidava Zé Grande para almoçar conosco. Mas ele dizia: Oxente dona Lourdes, vôte! Muito obrigado! E saía de fininho dizendo preferir comer sua gororoba. Talvez por isso sua aparência meio guenza. Mas nada tirava dele a alegria pela vida.

 
Ao falar dele eu me lembro dos momentos que antecediam o período das Festas Natalinas. Ruas cheias de lâmpadas e luzes faziam brilhar os adereços da época; músicas tocando nas rádios, e nas lojas os apelos consumistas lembrando o Natal. Eu aguardava ansioso a chegada do Natal e com ele a alegria de ver Papai Noel. Ele existia. Morava vizinho a mim. Antes de chegar o Natal, Zé Grande não perdia os Pastoris. E na noite do dia 24 de dezembro me vinha uma vontade imensa de ver Papai Noel. Na véspera de Natal Zé Grande batia lá em casa vestido com os trajes do bom velhinho. Roupa vermelha surrada, a barba branca não passava de um arranjo feito com algodão e as velhas botinas pretas estavam maltratadas e sujas. O saco nas costas trazia um monte de papel e jornais velhos que ele guardava de um ano para outro na petisqueira da sala de jantar.

Sua figura causava a maior alegria. Desse jeito aquele homem bom se achegava vindo em nossa direção. Ao entrar em casa dizia mais ou menos assim: Bendito seja nosso Senhor Jesus Cristo! E ele mesmo respondia: Para sempre seja louvado! Em seguida ele tirava dos bolsos bombons de menta e café para distribuir com as crianças. Depois de sua apresentação ele passava a contar estórias de trancoso noite adentro. Em sua face havia a mesma alegria pura que cativava a todos que o conheciam.

Eu acredito que a época mais feliz de minha vida foi aquela em que eu ainda acreditava em Papai Noel. Eu era um menino puro, ingênuo e achava que no mundo só existiam pessoas boas e generosas iguais a Zé Grande. Na minha mente não havia espaço para encontrar pessoas ruins. Mas o tempo passou até que um dia soubemos que ele havia morrido. Não deixou mulher nem filhos. Somente saudade entre aqueles que tiveram a sorte de conviver por muitos anos ao seu lado. Quanta saudade do bom Papai Noel! O melhor de todos os papais-noéis que encontrei foi sem dúvida o meu amigo Zé Grande. Dele eu sinto saudade até hoje.

Luiz Maia
Literatura & Opinião! (Blog pessoal)
http://literaturaeopiniao.blogspot.com.br/

Literatura & Opinião! (Site pessoal)
http://www.luizmaia.blog.br/

Autor dos livros "Veredas de uma vida", "Sem limites para amar", "Cânticos", "À flor da pele" e "Tamarineira - Natureza e Cidadania. Recife-PE.



terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O acidente - 8 de dezembro de 1973
Por Luiz Maia *

No domingo, 8 de dezembro de 2013, completo quarenta anos caminhando sobre rodas. Naquela data fui atingido na cabeça por um tiro de arma de fogo. Segundo eu soube, fora um amigo bêbado que me acertara sem querer. Mas do passado eu quero mais é recordar o tempo em que os palhaços eram a fonte límpida de minha mais pura alegria. Os de agora não me fazem rir.

Naquela sexta-feira à noite de 1973, eu fiquei entre a vida e a morte... Internado no Real Hospital Português, fui submetido a uma delicada intervenção cirúrgica que durou mais de oito horas. O pátio do RHP estava repleto de pessoas, todas querendo saber de mim. Eu, sem querer, fazia muita gente sofrer. Os meus pais estavam arrasados, inconsoláveis, tristes...

Esse acidente me fez conhecer um mundo completamente diferente. Logo eu aprendi a conviver com uma triparesia (diminuição dos movimentos no andar), sequela que carrego comigo até hoje. Após o impacto dos primeiros meses, vieram as dores da alma, as dúvidas com relação ao amanhã. A escuridão e a interrogação caminhariam comigo por um longo tempo...

Aprendi, com os meses, que a palavra "calma" seria a eterna resposta para minhas repetidas perguntas - "Doutor, quando eu voltarei a andar?" - "Calma, meu rapaz, tenha bastante calma..." É duro... mas fazer o quê? Quando passamos por um grande problema, restam-nos poucas saídas. Entre se maldizer e reaver a vontade de viver eu fiquei com a segunda opção. Afinal de contas, a vida é uma sucessão de escolhas.
 
Ao sair do hospital, pela primeira vez, eu chegava em minha casa sem as minhas pernas, andando pelas mãos de irmãos e amigos. Sentado numa poltrona na sala de visitas, com todo o tempo do mundo para aproveitar, pela primeira vez percebi como era bonita a cerâmica de nossa casa. Antes eu só a pisava, grosseira e distraidamente. Agora me sobrava tempo para admirar o belo, mesmo à custa de perdas e de sofrimentos. É a recompensa às avessas, mas não deixa de ser interessante por isso.
 
O começo foi difícil. Passei um ano com vergonha de encarar as pessoas. Fugia de todos. Eu preferia estar em minha casa, no silêncio do terraço e ao lado da minha mãe. Assim eu me sentia protegido. Às vezes o sentimento de culpa me invadia pelo fato de causar sofrimento aos meus pais. Minha mãe já não tinha o mesmo brilho no olhar, expressava amor, em forma de angústia e compaixão.

O tempo passou sem que eu me acostumasse com a ausência dos amigos. Nem sempre conseguimos entender esse tipo de silêncio. Talvez seja isso. Acostumados com a presença e as palavras, quando eles silenciam nos assustam. Esquecemo-nos que também no silêncio a amizade se mantém viva. É difícil conceber que às vezes precisamos aprender a viver sozinhos, curtir a solidão que nos ensina a necessidade de ouvir mais vezes o silêncio que vem de nossas almas. Sem essa introspecção diária fica difícil resolver certas questões.

Eu faço esse comentário com vocês por me sentir útil e feliz! Há bastante tempo eu me sinto uma pessoa melhor, um homem de bem com a vida, em todos os aspectos. Hoje eu agradeço pelas amizades que conquistamos ao longo dos anos, muitas das quais por meio do contato virtual. Essa vontade em traduzir meus sentimentos em palavras vem e volta e eu ensaio uns versos sem a preocupação de produzir, mas de dizer tudo aquilo que eu vivi e estou vivendo. Minha inspiração vem de momentos de sonhos, de instantes de paz, de momentos de saudade, mas de pura alegria e contentamento.

Eu levei a vida inteira me equilibrando em cima de uma navalha: de um lado a vida, do outro a morte. Uma força estranha, que eu não sabia explicar a razão, sempre soprava a meu favor, empurrando-me para a vida! Eu precisava estimular o meu lado fraco a continuar insistindo em poder um dia ser forte. Mesmo incrédulo, por instantes, eu precisava mentir para mim mesmo e assim poder fazer valer a obstinação que em mim vivia adormecida. Garanto que é realmente isso! Sem tirar nem pôr!

Luiz Maia *
Literatura & Opinião! (Blog pessoal)
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Autor dos livros "Veredas de uma vida", "Sem limites para amar", "Cânticos", "À flor da pele" e "Tamarineira - Natureza e Cidadania. Recife-PE.